O GRITO




O GRITO

                                                Chega-mos ao fim duma aspérrima estrada
Para além da qual está a Vida, ou está o nada
Mas ainda a Vida nos estende a mão
Veremos se o Homem aceita o seu gesto ou não
Nesta trajectória finita, contudo vejo
Ainda uma porta aberta ao meu desejo…
Depois que a produção crescente nos trocou
Pelas modernas máquinas que a ciência inventou
Nós «máquina humana» passaríamos desde então
A dar um passo em frente na Civilização
Mas desde logo se viu que tal ideia não fruía
Já que a produção, sem o trabalho humano não valia
E ainda ao lendário «Progresso» da Humanidade
 Ouvi gritar também: «Eu não sou a Verdade!»
Da beira dum abismo de escarpada elevação
Um eco dúbio e derradeiro de abstracção
«A máquina ocupou de vez o trabalho humano!
Repetiu ainda o «Progresso». «Não há nenhum engano!»
«E ela ocupará para sempre o lugar vosso
«A sociedade do valor submergiu, garantir-vos posso
«E o vosso fetiche inútil e vão medianeiro
 «Esse deus todo poderoso a que chamais dinheiro
Continuará o inimigo mor da vossa vida dia a dia
«Porque nem ele nem vós, nenhum terá valia
«Ele sem vossa produção, é inútil, nada vale
«E vós sem ele ireis morrer do mesmo mal
«Enquanto os dois coexistirem lado a lado
«Nem um nem outro mais será valorizado
«Eis o fim da vossa estrada economicamente
«O abismo da produção é um monstro à vossa frente
«Qual espada de Dámocles que pendente os ameaça
« Com a morte, com a fome e, a pobreza em massa
«Forçoso é usar da mente a total capacidade
«Só gritar pelas ruas tem justeza, mas frágil validade
«Nunca tão precisos foram vossos dotes racionais
«Produção e valor, em vossas leis, não combinam mais
Tempo houve sim… um tempo bem diferente
Que dinheiro, trabalho e homem, num mundo incipiente
Lado a lado se agruparam em forçada conjunção
Berço da frustrada e actual abstracção!
 Hoje na sociedade dissociativa e do valor
Quando a máquina quer aumentar o seu labor
Homem e máquina…ambos se impedem lado a lado
 Um porque não tem dinheiro, outro não tem mercado
E o sistema estultamente redobrou seu coxear
Quando mais pernas tem para poder andar…
Se algo mais absurdo e mesquinho o mundo tem
Bem gostava de o saber. Sábios, digam-me quem?
Ninguém quer, por certo, a máquina excluir
   Quando ela feita foi para nos servir
O que não deixa de ser deveras singular
É que elas apodreçam, por aí, em qualquer lugar
E nós sem dinheiro para move-las
 Apodreça-mos como Job* ao lado delas…
 Pois se o fruto da produção com outro produtor
Que humano não seja não pode ter valor…
Façamos que as leis do dinheiro sejam finadas
Para podermos caminhar por novas estradas
E acharmos a porta que a ciência nos oferece
Que o tempo mais antigo, logicamente não conhece…
Se hoje o empresário do trabalho nos afasta
 Por ter maquinaria lesta, competente e vasta
Engenhos e robótica de cunho superior
Que por nós podem fazer tudo o que preciso for…
Justo é que assim seja, e o descanso, tarde embora
Venha trazer-nos o direito de repousar agora…
O caso é que a escravatura com roupagem diferente
 Continua, como dantes, a perseguir-nos sempre  
Essa antiga, medonha e execrável figura…
Que só com o trabalho morto a vida nos segura
Enquanto a tecnologia pouco a pouco desfalece
Porque o valor sem a nossa mão não aparece
E a humanidade em grandes quantidades
É forçada a morrer faminta nas ruas deletérias das cidades
Ou o nosso engenho subtil terá de conseguir transpor
 As grades dissociativas e férreas do sistema do valor
Ou a lama dissociável e fetichista do dinheiro
 Um dia será… o nosso  último coveiro!


*Mito bíblico

Leonel Santos
Lisboa, Setembro 2012