O Monstro Difuso





PROÉMIO SOBRE O MONSTRO DIFUSO

Cale-se de Pessoa o abstruso Mostrengo
Que chiava sobre as naus de D. João II
 Sou eu o Monstro-mor e mais horrendo
   O derradeiro Monstro que paira sobre do mundo!

Leonel Santos, Lisboa, Julho de 2014


O MONSTRO DIFUSO


Nascido algures na bruma de outras eras
Diferente  eu sou de todas as quimeras
De todos os dragões alados do Levante
De olhos sanguíneos e boca flamejante
De todas as serpentes astutas, infernais
De lendas bolorentas e ancestrais
Da Hidra de Lerna de cabeças várias
De todos os mostrengos e todas alimárias.
Não sou delírio vão, nem grito de profetas
Nem génio de pintor, nem sonho de poetas
Mas sou realidade…e impossível
Será que exista outra mais terrível…
Meus braços, invisíveis e diferentes
De todos os monstros e todos os viventes
São os vossos braços…e vos digo mais
Ando com as pernas com que vós andais
Depois que percorri os séculos um a um
Cheguei enfim aqui… a lado nenhum…
Tive pais, padrinhos e parentes
Sou filho de sábios, génios e valentes
Usei chapéu alto e usei gravata
Fui socialista e fui fascista, fui padre e fui pirata
Esclavagista e liberal, anarquista e democrata
Meu nome não importa, minha missão é esta
Sou do mundo a derradeira besta
A Lei morreu, a Ordem se esfumou
E a Nova Ordem é a desordem que eu sou
A Abstracção total, o Crime do mundo
O pântano e a voragem onde me afundo
A miragem doirada de toda a podridão
O Tartufo supremo da Civilização.
A tragédia que avança…o Lamaçal
A flor sublime da estrumeira global
Para mim paz e guerra são iguais
Dar-vos-ei a que achar que vale mais
E caso valha mais a gente morta
Que morra quem morrer que eu não me importa
Arrancarei olhos, rins e corações
Para vender em troca de milhões
E em troca de milhões farei também
A Justiça e a Lei que me convém
Lançarei no lixo o pão que não se come
Enquanto for matando o mundo à fome
A corrupção será sempre o meu estandarte
A minha vida, a minha força, a minha arte
Depois que reduzi o mundo à escravatura
Vos canto a liberdade, o progresso e a fartura
Porque também a minha linguagem
Serve os meus interesses e traz a minha imagem
Mas tudo o que  eu prometo são cantos de sereias
Porque só a guerra me percorre as veias
Esse monstro que devora os inocentes
São as minhas garras, a força dos meus dentes
É o desespero de um monstro condenado
A morrer matando quem não é culpado
Farei prostitutas e drogados aos milhões
Porque eu próprio sou a droga das nações
Nações que no fundo não passam de utopia
Porque não há fronteiras na minha hegemonia
Sou eu o desespero que cada um transporta
A vida desiludida que já nasce morta
Sou eu o terrorismo, a última invenção
Dos génios do Mercado p’ra minha salvação
Sem terrorismo, anti-terrorismo, crime e guerra
Não posso eu, um minuto mais, habitar a Terra
Não sou americano, nem árabe, nem judeu
Não sou homem-bomba, nem crente, nem ateu
Sou apenas eu e, ninguém mais forte
Poderá deter-me a não ser a morte…
Até na paz breve que a vida vos consente
Farei eu morrer milhões de gente
Porque eu sou a morte e não sou a vida
Sou o aborto, o anti-aborto, a pedofilia e a sida
O desemprego e a falência, a insegurança e as prisões
Os Tribunais, o Direito, a Justiça e os Ladrões
E sou ainda na gíria universal
O Iluminismo, a civilização e a Moral
Sou ainda o fogo que vos leva gados, casas e floresta
Não posso mudar nunca, a minha sina é esta…
Sou a Democracia, sou a Modernidade
Sou o Crime, o Cinismo, a Caridade
Sou o Mercado e o Dinheiro... Sou o Valor
Não tenho pátria, nem raça, nem cor
Todos os deuses, antigos e modernos
Todos os paraísos e todos os infernos
Pobres e ricos, palhaços, presidentes e reis
Têm um valor…e esse Valor são as minhas leis
Nada tenho de humano, sou cego, surdo e mudo
Indiferente á dor, à guerra, à morte, a tudo…
Sou o Dinheiro-deus … «abstracção real»
Que transforma em besta cada racional!

Leonel Santos,
Lisboa, Março de 2004

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